Manifesto do Teatro Essencial
março/1987
"Irati. Ir a ti. Pequena cidade do sul do Brasil onde nasci. Parece uma bacia, se diz. Parece sim, com aquelas montanhas ao redor do vale onde estão as casas. Da minha, eu via os campos de trigo lá longe e pensava: deve haver algo a mais, além daqui.
Senti o mesmo com o melhor teatro que encontrei. Pensava: deve haver mais, além. E tem. O a mais é o que está sempre vindo. Dentro desta disposição dialética me sinto livre.
O que me encanta no teatro é esta possibilidade de escolher. Assim, escolho para mim o Teatro Essencial. E o estabeleço como meu. Aquele teatro que tenha o mínimo possível de efeitos, o mínimo. E que contenha a máxima teatralidade em si próprio. Que na figura do humano no palco se realize uma alquimia única: aquela em que a realidade da representação (da reapresentação) é mais vibrante que o próprio tempo cronológico. Que critique esse tempo, que revele esse tempo. Que nesse fim de século o teatro possa reafirmar o sentido essencial como bem mais evidente que matéria descartável. Quero trocar a fantasia da composição teatral pela presença viva do ator. Acredito na relação de nova realidade que se faz na força da presença viva do ator, engajado na história com suas idiossincrasias, sem recursos do fabricado, limpidamente como água na fonte. Os valores do palco muitas vezes estão povoados de valores de bastidor, de camarim. Quero o palco nu. Os figurinos, cenários e discursos radiofônicos muits vezes acoplam parasitárias imagens no ator. Não quero decoração.
Quero no seco. Com raiva decreto o fim do excesso. A pirotecnia mente. Quero sinceridade.
No lixo o broche. No palco o peito.
O ritmo e o espaço em si trazem diagramas teatrais vertentes de riqueza. Cervantes e a palavra, Beethoven e a nota, o teatro e o ator... De Irati a Londres, Pequim, Zurique, Nova Iorque, Nova Delhi, permanece a idéia dos campos de trigo. Em qualquer lugar eu os vejo no horizonte me provocando o pensamento: deve haver mais, além.
Como atriz, diretora, autora, minha preocupação sempre é o poder, as injustiças sociais, os comportamentos padronizados, a estética e a ética rançosa do sistema patriarcal capitalista.
Cada vez mais estou menos interessada nos movimentos microcósmicos da sociedade. Cada vez menos cultivo ídolos. Cada vez menos acredito no best-seller. O senso comum está desmistificado no Brasil que pára para ver novela. Que elege seus mitos com os mesmos parâmetros com que reclama, invariável e passivamente, do governo. Essa sociedade que se protege no útero do padrão. Cada vez mais estou mais anarquista. Cada vez mais rio dos políticos (dos de profissão e dos de atuação). Cada vez mais me salvo pelo caminho pessoal, individual, único. Aos meus ex-alunos sempre digo, se me perguntam o que fazer: inventem, porque os princípios estão rangendo, há algo de podre em todos os lugares. Trabalho pelas gerações que virão, não tenho a menor crença no resultado imediato. Mas sei que o Teatro Essencial altera algumas bases do nosso teatro. Já não fico bêbada com o sucesso. Apenas mais científica sobre as platéias. Nem as conquistas de mídia me seduzem. Não me delicio com o deslumbre. Quero uma organização mais limpa da comunicação. Que se respire menos barrocamente nesta área.
Odeio a maior parte das regras de nossa organização social. Considero antivida, com cheiro de mofo, todos os cânones comportamentais, o gosto da estética burguesa, a despersonalização de colonizado. A morna atitude de nossa nação mediocriza nossa experiência vital. Aí nossa cultura reflete esse cômodo respirar consumista, essa falta de diversidade. Esse pequeno clube de interior, que é nosso ambiente cultural, se ressente. Ser artista aqui exige que se enfrente o solitário desejo pessoal de mudar, de inventar, de renovar. Quanto ao mercado, sobreviver dentro dele já é outra perspectiva. Igual a qualquer outro mercado. Acrescido do abandono do que seja arte numa Republiqueta.
O teatro como estava em 1977 no Brasil era pouco. Londres sugeria, e realmente lá estava: gestual detrás do canal da Mancha. Na Fitzroy Square, em um curso. Tudo muito tradicional, sem participação crítica do artista. Discordei. Criei meu próprio espetáculo solo, o primeiro.
Volto de lá em 1980, após três anos. Volto mãe. Meus filhos, como eles me revelam! Com eles não posso fugir da vida. Impossível pela própria natureza. Os dois, em separado, são tão diferentes. Durante minhas gestações eu mergulhei inteiramente no processo psicológico e biológico que acontecia comigo. Criar uma criança é um trabalho social, não se educa para ser sua. Assume-se a responsabilidade na medida em que houve uma escolha disso, mas deveria ser dividido com a sociedade. de outra maneira as gerações alimentam egocentrismos, possessividades. Quando se cuida de uma criança não é simplesmente um botão que se aciona, mas todo um complexo de arquétipos se reorganiza. É por isso que eu vejo maternidade como fonte de extrema força modificante, poderosa. Digo também que não vejo o parto como sofrimento mas como supremo momento de integração com a natureza, que pode desenvolver uma atitude permanentemente voltada ao sagrado, ao poder criador. Se a mulher puder dar direções à sua gravidez, parto e exercício de sua maternidade, então ela é revolucionária.
Minhas relações ficaram mais básicas depois de mãe. O jeito com que conduzo minha vida mudou. Tenho muito mais respeito e doçura por mim mesma. Redescobri a fraternidade.
Minha irmã, com quem tenho um diálogo primitivo: conhecemos batom juntas, vimos tevê pela primeira vez juntas. Fomos internas num colégio e sentimos lá a ausência dos pais, juntas. Uma cumplicidade de vida. É o que se chama família. Família deve ter, a meu ver, como função a oportunidade de experiências comuns e da equalização disto. Me sinto muito amada pela minha irmã. Quando a vejo, ponho roupa limpa e me perfumo.
Não dispenso a chance de manifestar-me na expansão do meu feminino, que é peculiar, que é único. Meu trabalho é o de uma mulher no século XX. Como não ser especial? Não, não dispenso meu trilho do feminino. Temos toda a História sendo escrita. Somos nova, frescas e fortes.
Não esqueço a miséria do Brasil, da miséria latina. A miséria do não-pão, da miséria do egoísmo, a miséria dos ideais, a miséria cultural, a miséria televisiva, a miséria das relações humanas, a miséria da saúde, a miséria dos sonhos, a miséria da loteria, a miséria dos enganos, dos remédios, do desespero, da solidão. A tragédia brasileira. Os cambodjas cotidianos nos hospitais do Brasil. As chernobylls escorrendo das favelas, nos trens da Central. O heroísmo largando a capa e a espada, saltando para a página documentária. Olho no olho da pobreza, cheiro de sujeira e fome, muita fome, em todas as classes do Brasil. De pão com vitamina, do faisão de uma boa música. Fome e ecologia gritam nas escadaria do palácio do Planalto, inutilmente. Gritam na História. Artista tem ouvido de tuberculoso. Político é sadio. As pessoas pensantes, não as que não gostam de pensar, mas as que saboreiam o cérebro e acariciam a alma, estão muito preocupadas. Com o vírus, com o fim. Tudo está muito urgente agora. Os valores se atropelam. Há muitos espetáculos de teatro que olho e penso: mas isso é pré-Aids, agora não é mais assim.
Em abril de 1986, no Festival Internacional de Teatro de Montevidéu, fui convidada por Ellen Stewart, diretora do La MaMa, para me apresentar em seu teatro, em Nova Iorque. Na mesma ocasião ganhei uma bolsa de estudos concedida pela Fundação Fullbright. As datas coincidiriam: entre dezembro de1986 a março de 1987. Os estudos que faria lá, abandonei logo no início. Constatei que minha experiência dentro do teatro não teria nada a ser acrescentada ali. Mas eu estava de certa forma em situação privilegiada. Tinha uma bolsa que me sustentava em Nova Iorque, era hópede do La Mama, meu telefone pessoal tocava inaudível em São Paulo, o desanimador contexto de meu país não me atingia naquele inverno, meus filhos estavam cheios de saúde e me deixaram em Nova Iorque para desfrutar calorosas férias no Rio de Janeiro com o pai, e nenhuma indesejável visita ultrapassava minha porta - o isolamento perfeito para a elaboração de um trabalho. Nada me distrairia do meu próprio repertório de expectativas, de instrumentalização, de prazer. Além de tudo tinha temporada marcada para dali a dois meses em uma das salas mais disputadas no mundo da vanguarda teatral. Com direito a toda infra-estrutura de um lançamento em metrópole. Por enquanto não sabia o que eu ia apresentar, em minha estréia nos Estados Unidos. Acompanhada de um monitor e de uma câmera de vídeo, investiguei-me durante intermináveis exercícios cênicos. Apareceu urgente então uma espera de muito tempo por duas rainhas: Mary Stuart e Elizabeth I. A peça foi um sucesso.
Seguiu-se de convite para estréia anual de meus espetáculos em Nova Iorque. Tres outros solos seguiram-se e muitas temporadas internacionais. Prêmios para o trabalho e para a melhor representatividade de teatro brasileiro no exterior. Eu sempre volto ao Brasil. Quero a convivência diária dos meus filhos. Estamos tentando permanecer na pátria.
Minha idade é massa, minha idade é bela. Nela não se é mais predicado nem sujeito. A gente vira verbo de si própria. A gente vira agente.
Que bom que não fiz nenhum festival da canção antes. Estou mais apta hoje, para os inimigos. Me sinto mais categorizada com a raiva sem fim que trago contra a banalização, o superficial. Me sinto geração eleita ser a última de meia-idade deste século redondo, o vinte. Para nós reservou-se o pior. Por isso fomos tão violentamente treinados em nossa juventude precoce. Convivi muito com o suicídio mental para despertar hoje os princípios da sobrevivência com know-how. Escolher e alimentá-los. A ilusão morreu nos primeiros vagidos do sucesso. Depois recolhemos a placenta e a comemos como vaca. Amamentou-se o feto. Deu no que deu: maturidade. Aceito o fim do meu século como presente de poderosos: somente kharmas autônomos o enfrentarão com criatividade e vitalidade. A verdade hoje assumiu-se como passaporte para o século XXI. Me lembro de um dia, nos anos 60, em que escrevi: "O astronauta americano hoje pousou na lua. O monopólio estendeu-se pelo universo".
Hoje, duas décadas de guerras, me considero vitoriosa na resistência, com uma família bem especial, um teatro pessoal e absurdamente feliz.
Londres, Pequim, Zurique, Nova Iorque, Nova Delhi, Rio. Feito égua selvagem, me recuso a sair do pasto de Irati. É de lá que vejo os campos de trigo."
"Irati. Ir a ti. Pequena cidade do sul do Brasil onde nasci. Parece uma bacia, se diz. Parece sim, com aquelas montanhas ao redor do vale onde estão as casas. Da minha, eu via os campos de trigo lá longe e pensava: deve haver algo a mais, além daqui.
Senti o mesmo com o melhor teatro que encontrei. Pensava: deve haver mais, além. E tem. O a mais é o que está sempre vindo. Dentro desta disposição dialética me sinto livre.
O que me encanta no teatro é esta possibilidade de escolher. Assim, escolho para mim o Teatro Essencial. E o estabeleço como meu. Aquele teatro que tenha o mínimo possível de efeitos, o mínimo. E que contenha a máxima teatralidade em si próprio. Que na figura do humano no palco se realize uma alquimia única: aquela em que a realidade da representação (da reapresentação) é mais vibrante que o próprio tempo cronológico. Que critique esse tempo, que revele esse tempo. Que nesse fim de século o teatro possa reafirmar o sentido essencial como bem mais evidente que matéria descartável. Quero trocar a fantasia da composição teatral pela presença viva do ator. Acredito na relação de nova realidade que se faz na força da presença viva do ator, engajado na história com suas idiossincrasias, sem recursos do fabricado, limpidamente como água na fonte. Os valores do palco muitas vezes estão povoados de valores de bastidor, de camarim. Quero o palco nu. Os figurinos, cenários e discursos radiofônicos muits vezes acoplam parasitárias imagens no ator. Não quero decoração.
Quero no seco. Com raiva decreto o fim do excesso. A pirotecnia mente. Quero sinceridade.
No lixo o broche. No palco o peito.
O ritmo e o espaço em si trazem diagramas teatrais vertentes de riqueza. Cervantes e a palavra, Beethoven e a nota, o teatro e o ator... De Irati a Londres, Pequim, Zurique, Nova Iorque, Nova Delhi, permanece a idéia dos campos de trigo. Em qualquer lugar eu os vejo no horizonte me provocando o pensamento: deve haver mais, além.
Como atriz, diretora, autora, minha preocupação sempre é o poder, as injustiças sociais, os comportamentos padronizados, a estética e a ética rançosa do sistema patriarcal capitalista.
Cada vez mais estou menos interessada nos movimentos microcósmicos da sociedade. Cada vez menos cultivo ídolos. Cada vez menos acredito no best-seller. O senso comum está desmistificado no Brasil que pára para ver novela. Que elege seus mitos com os mesmos parâmetros com que reclama, invariável e passivamente, do governo. Essa sociedade que se protege no útero do padrão. Cada vez mais estou mais anarquista. Cada vez mais rio dos políticos (dos de profissão e dos de atuação). Cada vez mais me salvo pelo caminho pessoal, individual, único. Aos meus ex-alunos sempre digo, se me perguntam o que fazer: inventem, porque os princípios estão rangendo, há algo de podre em todos os lugares. Trabalho pelas gerações que virão, não tenho a menor crença no resultado imediato. Mas sei que o Teatro Essencial altera algumas bases do nosso teatro. Já não fico bêbada com o sucesso. Apenas mais científica sobre as platéias. Nem as conquistas de mídia me seduzem. Não me delicio com o deslumbre. Quero uma organização mais limpa da comunicação. Que se respire menos barrocamente nesta área.
Odeio a maior parte das regras de nossa organização social. Considero antivida, com cheiro de mofo, todos os cânones comportamentais, o gosto da estética burguesa, a despersonalização de colonizado. A morna atitude de nossa nação mediocriza nossa experiência vital. Aí nossa cultura reflete esse cômodo respirar consumista, essa falta de diversidade. Esse pequeno clube de interior, que é nosso ambiente cultural, se ressente. Ser artista aqui exige que se enfrente o solitário desejo pessoal de mudar, de inventar, de renovar. Quanto ao mercado, sobreviver dentro dele já é outra perspectiva. Igual a qualquer outro mercado. Acrescido do abandono do que seja arte numa Republiqueta.
O teatro como estava em 1977 no Brasil era pouco. Londres sugeria, e realmente lá estava: gestual detrás do canal da Mancha. Na Fitzroy Square, em um curso. Tudo muito tradicional, sem participação crítica do artista. Discordei. Criei meu próprio espetáculo solo, o primeiro.
Volto de lá em 1980, após três anos. Volto mãe. Meus filhos, como eles me revelam! Com eles não posso fugir da vida. Impossível pela própria natureza. Os dois, em separado, são tão diferentes. Durante minhas gestações eu mergulhei inteiramente no processo psicológico e biológico que acontecia comigo. Criar uma criança é um trabalho social, não se educa para ser sua. Assume-se a responsabilidade na medida em que houve uma escolha disso, mas deveria ser dividido com a sociedade. de outra maneira as gerações alimentam egocentrismos, possessividades. Quando se cuida de uma criança não é simplesmente um botão que se aciona, mas todo um complexo de arquétipos se reorganiza. É por isso que eu vejo maternidade como fonte de extrema força modificante, poderosa. Digo também que não vejo o parto como sofrimento mas como supremo momento de integração com a natureza, que pode desenvolver uma atitude permanentemente voltada ao sagrado, ao poder criador. Se a mulher puder dar direções à sua gravidez, parto e exercício de sua maternidade, então ela é revolucionária.
Minhas relações ficaram mais básicas depois de mãe. O jeito com que conduzo minha vida mudou. Tenho muito mais respeito e doçura por mim mesma. Redescobri a fraternidade.
Minha irmã, com quem tenho um diálogo primitivo: conhecemos batom juntas, vimos tevê pela primeira vez juntas. Fomos internas num colégio e sentimos lá a ausência dos pais, juntas. Uma cumplicidade de vida. É o que se chama família. Família deve ter, a meu ver, como função a oportunidade de experiências comuns e da equalização disto. Me sinto muito amada pela minha irmã. Quando a vejo, ponho roupa limpa e me perfumo.
Não dispenso a chance de manifestar-me na expansão do meu feminino, que é peculiar, que é único. Meu trabalho é o de uma mulher no século XX. Como não ser especial? Não, não dispenso meu trilho do feminino. Temos toda a História sendo escrita. Somos nova, frescas e fortes.
Não esqueço a miséria do Brasil, da miséria latina. A miséria do não-pão, da miséria do egoísmo, a miséria dos ideais, a miséria cultural, a miséria televisiva, a miséria das relações humanas, a miséria da saúde, a miséria dos sonhos, a miséria da loteria, a miséria dos enganos, dos remédios, do desespero, da solidão. A tragédia brasileira. Os cambodjas cotidianos nos hospitais do Brasil. As chernobylls escorrendo das favelas, nos trens da Central. O heroísmo largando a capa e a espada, saltando para a página documentária. Olho no olho da pobreza, cheiro de sujeira e fome, muita fome, em todas as classes do Brasil. De pão com vitamina, do faisão de uma boa música. Fome e ecologia gritam nas escadaria do palácio do Planalto, inutilmente. Gritam na História. Artista tem ouvido de tuberculoso. Político é sadio. As pessoas pensantes, não as que não gostam de pensar, mas as que saboreiam o cérebro e acariciam a alma, estão muito preocupadas. Com o vírus, com o fim. Tudo está muito urgente agora. Os valores se atropelam. Há muitos espetáculos de teatro que olho e penso: mas isso é pré-Aids, agora não é mais assim.
Em abril de 1986, no Festival Internacional de Teatro de Montevidéu, fui convidada por Ellen Stewart, diretora do La MaMa, para me apresentar em seu teatro, em Nova Iorque. Na mesma ocasião ganhei uma bolsa de estudos concedida pela Fundação Fullbright. As datas coincidiriam: entre dezembro de1986 a março de 1987. Os estudos que faria lá, abandonei logo no início. Constatei que minha experiência dentro do teatro não teria nada a ser acrescentada ali. Mas eu estava de certa forma em situação privilegiada. Tinha uma bolsa que me sustentava em Nova Iorque, era hópede do La Mama, meu telefone pessoal tocava inaudível em São Paulo, o desanimador contexto de meu país não me atingia naquele inverno, meus filhos estavam cheios de saúde e me deixaram em Nova Iorque para desfrutar calorosas férias no Rio de Janeiro com o pai, e nenhuma indesejável visita ultrapassava minha porta - o isolamento perfeito para a elaboração de um trabalho. Nada me distrairia do meu próprio repertório de expectativas, de instrumentalização, de prazer. Além de tudo tinha temporada marcada para dali a dois meses em uma das salas mais disputadas no mundo da vanguarda teatral. Com direito a toda infra-estrutura de um lançamento em metrópole. Por enquanto não sabia o que eu ia apresentar, em minha estréia nos Estados Unidos. Acompanhada de um monitor e de uma câmera de vídeo, investiguei-me durante intermináveis exercícios cênicos. Apareceu urgente então uma espera de muito tempo por duas rainhas: Mary Stuart e Elizabeth I. A peça foi um sucesso.
Seguiu-se de convite para estréia anual de meus espetáculos em Nova Iorque. Tres outros solos seguiram-se e muitas temporadas internacionais. Prêmios para o trabalho e para a melhor representatividade de teatro brasileiro no exterior. Eu sempre volto ao Brasil. Quero a convivência diária dos meus filhos. Estamos tentando permanecer na pátria.
Minha idade é massa, minha idade é bela. Nela não se é mais predicado nem sujeito. A gente vira verbo de si própria. A gente vira agente.
Que bom que não fiz nenhum festival da canção antes. Estou mais apta hoje, para os inimigos. Me sinto mais categorizada com a raiva sem fim que trago contra a banalização, o superficial. Me sinto geração eleita ser a última de meia-idade deste século redondo, o vinte. Para nós reservou-se o pior. Por isso fomos tão violentamente treinados em nossa juventude precoce. Convivi muito com o suicídio mental para despertar hoje os princípios da sobrevivência com know-how. Escolher e alimentá-los. A ilusão morreu nos primeiros vagidos do sucesso. Depois recolhemos a placenta e a comemos como vaca. Amamentou-se o feto. Deu no que deu: maturidade. Aceito o fim do meu século como presente de poderosos: somente kharmas autônomos o enfrentarão com criatividade e vitalidade. A verdade hoje assumiu-se como passaporte para o século XXI. Me lembro de um dia, nos anos 60, em que escrevi: "O astronauta americano hoje pousou na lua. O monopólio estendeu-se pelo universo".
Hoje, duas décadas de guerras, me considero vitoriosa na resistência, com uma família bem especial, um teatro pessoal e absurdamente feliz.
Londres, Pequim, Zurique, Nova Iorque, Nova Delhi, Rio. Feito égua selvagem, me recuso a sair do pasto de Irati. É de lá que vejo os campos de trigo."
Por Denise Stoklos.
Ela mesma.
Denise Stoklos quando propõe o teatro como fonte e estrada com infinito chão não necessita de introduções ou predicativos para enfatizar sua qualidade e importância enquanto HumanoArtista. Torna-se uma referência a ser estudada e saboreada.
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